Nasci em 1974, sou filha da madrugada. Ao longo destes 50 anos evolui muito, gosto de pensar que estou cada vez melhor, mais inteligente, mais compreensiva, mais livre. Uma das coisas mais valiosas que aprendi, uma das coisas mais importantes, foi dizer "não". Nem tudo pode ser, nem tudo pode acontecer.
A curva
25.4.25
Liberdade
18.4.25
Despertador
Até entendo a utilidade dos despertadores. Percebo que estamos nisto juntos e que haveriam muitos encontros que não se fariam se não houvesse horas nem alarmes. Por outro lado, perdemos sempre alguma coisa, mesmo quando ganhamos outras. Quantas vezes conseguimos o que queríamos porque fizemos tudo bem, estivemos na hora certa e assistimos àquele pôr do sol ou encontrámos aquela pessoa e achámos que a vida foi boa connosco porque obedecemos às regras? Aceito todo este raciocínio. Mas, porque não valorizamos mais o que nos aconteceu por acaso? O que não tínhamos planeado, aquelas experiências todas sem hora marcada, que só aconteceram porque estávamos no lugar errado?
"Errado"
11.4.25
Purgatório
A coisa anda sempre à volta do mesmo. Qual é o paraíso que me interessa? Qual a purificação que conta para mim? Quais os mandamentos que respeito ?
4.4.25
Plantas
Já tive várias vidas nesta vida e já fui uma pessoa main vert quando vivia em Paris. Tudo crescia e floria. Foi um período que acabou. Deixei as plantas na casa francesa e espero que alguém esteja a tratar bem delas. Hoje, de volta a Portugal eu ou elas somos mais selectivas. Só as mais resilientes sobrevivem e crescem e acredito que sejam felizes. Estou a falar de cactos, evidentemente. Gosto de pensar que são as minhas plantas, assim como tenho as minhas pessoas, as que ficam e resistem aos meus humores e faltas. As que gostam de ficar por perto, malgré moi.
21.3.25
Vizinhos
Na verdade, pouco me interessa as questões de vizinhança, fui uma única vez a uma reunião de condomínio e nunca lá mais pus os pés, seja em que país fosse. Declarei que tudo o que decidissem estava bem para mim e pagaria a minha parte, contudo nunca contassem comigo para assuntos de administração que com certeza iria desaparecer dinheiro sem que eu tivesse explicação para tal. Já é o que me acontece na vida pessoal, sempre foi e sempre será. Perder dinheiro é algo que aceito, perder tempo é que não consigo, peço imensa desculpa caros co-proprietários, mas está sol e agora vou para a praia ou está chuva e quero ouvir de olhos fechados uma música que eu cá sei para ir com o estado do tempo.
A minha mãe é todo um outro universo, adora verificar contas, resolver problemas com o elevador e chamar o senhor para trocar a fechadura do prédio. Gosta muito de saber como está a vizinha. Não que seja bisbilhoteira, isso sou eu, mas falar com as vizinhas no hall de entrada é algo que considera como um hobby em toda a sua plenitude. O pior era a minha posição neste cenário. Não queria interromper a conversa para pedir as chaves e ir embora daquele calvário. Não queria ser chata. Não queria aborrecer a minha mãe, que me parecia tão feliz em amena cavaqueira sem interesse nenhum. E, acima de tudo, eu já era uma pessoa optimista e achava que aquilo estava quase quase a acabar. Optimismo pueril, vão e estúpido. Perdi anos de vida naquele hall.
14.3.25
Até o diabo se ria
7.3.25
Coração lavado
Fui com uma amiga ao cinema ver o filme errado. Não sei se também têm dedo como eu para escolher amigas assim, mas eu gosto muito e recomendo . Não faço ideia como é que se faz para se ver um filme errado, e pelos vistos, a ela já lhe aconteceu várias vezes comprar bilhete, sentar-se, ver as luzes a apagar, assistir ao genérico e só depois, bem mais tarde, perceber que não está a ver o filme que queria. Quando nos sentámos na sala, ela mostrou-me o cartaz do filme que queria que víssemos, no écran do telemóvel. Eu tinha ido às cegas, porque sei que tem bom gosto quando não se engana. Supostamente o filme era para ser italiano e muito bonito, mas logo no inicio o filme pareceu uma coisa muito mais pesada do que me tinha sido prometido, com nomes vindos muito mais de leste. Fomos ver, por engano, um filme sobre o início da invasão russa à Ucrânia, no dia comemorativo do terceiro ano deste descalabro. Éramos 4 na sala, não sei se os outros dois também vieram ao engano ou se havia outros que estavam noutras salas a ver outros filmes, quando afinal queriam ver este.
Não aprendemos nada de novo no filme, no fundo já sabemos que a situação é horrível, que há derivas, que há situações ou traumas que levam humanos a cometer actos que nem em pesadelos são humanamente possíveis. Nem sequer é um filme que eu gostaria de ter visto, mas foi algo com importância que me aconteceu.
Essa minha amiga é companheira essencialmente de coisas boas, danças, risadas e alegrias. Não só, mas essencialmente é nessa parte da minha vida que a encontro mais vezes. Como se andássemos a dedicar a nossa amizade a fugir das coisas más que se passa lá fora, quando não estamos juntas. E, ver este filme precisamente com ela foi a metáfora perfeita do que andamos a esconder nas nossas vidas. Vivemos numa bolha frágil de felicidade. Pode rebentar a qualquer momento. Somos egoístas, e sabemo-lo. Mas não sabemos como podemos ser melhores. Gostamos de pensar que somos boas pessoas, tratamos dos nossos, respeitamos desconhecidos, ela até faz voluntariado e eu preocupo-me muito com o caminho que isto está a levar. Mas, na verdade, vivemos felizes e procuramos ambientes onde há alegria. Drogamo-nos também, claro, como qualquer ser lúcido que ainda quer ser feliz neste mundo ao contrário.
28.2.25
Carimbo
Nos tempos em que ainda achava que era obrigada a fazer coisas que não gostava, via muitos a ser utilizados à bruta em repartições de finanças e outras instituições criadas por pessoas que não são como eu. Era a única parte desta incursão ao mundo dos outros - com relógios de ponto, regras verticais e unilaterais e pequenos podres poderes - que me parecia ter interesse. O barulho, o que ficava depois do murro, A tinta e a marca. Tudo o resto me parecia extra terrestre ou demasiado terrestre. Em todo o caso, claramente isento de algo que me interessasse trazer para o meu mundo.
Lembro-me também dos carimbos da escola primária, lugar que gostava muito com a excepção dos castigos que os meus colegas mais livres recebiam. Lembro-me de os ver em fila, à frente do quadro, à espera da sua vez para receberem a sua réguada, ou porque tinham erros no ditado, ou porque estavam de pé ou a falar ou porque tinham chegado atrasados. Lembro-me do espanto que sentia com este processo. Nunca fui habituada a castigos e, espero nunca vir a habituar-me. Ser castigado por regras que, outras pessoas que não são como nós estabeleceram, devia ser proibido. Elas que vivam com as suas regras. Eu tenho cá as minhas e já me é doloroso suficientemente quando não as cumpro.
Outro lugar onde gosto muito de encontrar carimbos é na feira da ladra. Agarro-os muitas vezes e muitas vezes quase que os compro. Não estou a fingir que os vou comprar de cada vez que o faço. Não gosto de enganar quem vende coisas para serem usadas outra vez. Uma parte de mim quer mesmo levá-los comigo, para depois os colocar num sítio que vou esquecer e nunca mais usar, Agarro-os e aproveito as recordações que me vêm à cabeça. Por vezes, até acho que fecho os olhos e devo sorrir por momentos, a idade já permite que os outros não existam por breves instantes. E depois, segundo a minha regra, volto a pousá-los e deixo-os para quem os irá seguramente usar melhor.
Não gosto de assinar. As últimas assinaturas bonitas que vi são as das gerações dos meus pais, fluídas e artísticas, como as suas letras cursivas. As da minha geração são francamente toscas e quando não o são é porque estão a copiar as da geração anterior, e são anacrónicas e ridículas por isso mesmo. É melhor assumirmos o nosso tempo, as nossas conquistas e os nossos erros. No campo das assinaturas, a geração X errou. Ou então, sou eu não tenho a cultura visual necessária para apreciar este grafismo tosco ou copiado. Nas gerações que nos seguem tudo é possível, menos um gesto escrito decente e digno, uma geração que escreve com teclas nunca poderá assinar documentos ou cartas de amor com autenticidade. Proponho os carimbos. Um anel com carimbo personalizado para cada um. Os burocratas que tremam ou que burocratem depois. Eu, que agora faço jóias, acabei de ter uma ideia de jóias ao escrever um texto, como já tive uma ideia de desenho ou esculpir um pedaço de barro, tudo se interliga sem ordem nem horários. Faço de tudo, não faço muitas vezes é nada. E é assim que quero que seja. Lentamente, atrasada, desordenada, aceite e rejeitada.
Que se carimbe por cima.
Podem encontrar outros textos carimbados, pela Calita, a Maria João e a Mariana, Joana Outros mais tarde virão, ou não.
21.2.25
Teias de aranha
A minha casa está sempre um caos ou não seria minha. Neste tipo de organização livre é onde me sinto bem e desde que saí de casa dos meus pais nunca mais vivi nunca casa arrumada, excepto quando recebo visitas, ou quando vou de férias.
Só convido a minha casa quem é igualmente desarrumado, agora é esse o meu critério. Houve um tempo em que convidava quem eu gostava, mas o trabalho que dá arrumar tudo, para que fique apresentável não compensa. Não gosto assim tanto de ninguém a ponto de passar vários dias a arrumar, esfregar, organizar, lavar e, pior, a tentar que o trabalho feito não se desmanche antes da data combinada. Não que tenha nada contra casas arrumadas, mas não são é para mim, o problema não são elas, sou eu.
Tenho amigos que mesmo que nunca tenham sido convidados a minha casa, me convidam às suas. Gosto de pensar que lhes dou uma outra coisa em troca desta hospitalidade. Gosto de pensar que tem a ver com a minha personalidade, o meu sentido de humor corrosivo, ou o meu savoir vivre. Tento sempre não me esquecer de levar alcóol ou drogas para completar a minha presença. As casas deles não me incomodam muito com a sua arrumação imaculada, sinto-me praticamente bem e sempre que posso, aceito o convite, mas sentia-me melhor se estivessem um pouco desarrumadas, tenho que confessar. Não gosto de pensar que se deram a um trabalho, que não vou valorizar, para me acolher. E gosto ainda menos de pensar que, amigos meus, que eu prezo, passem muito tempo com actividades sem interesse ou, pior, estão tão domesticados que nunca atiram os sapatos ao calhas quando chegam a casa. Que, quando ninguém os está a julgar, mesmo assim têm gestos comedidos ou automáticos e, sem dar por isso, colocam os sapatos direitinhos no sítio que está predisposto para os sapatos. Que tenham sítios predispostos para os sapatos que entram e saiem várias vezes por dia.
Na desarrumação catastrófica que é sempre a minha casa, estranhamente quase nunca há teias de aranha. Sempre ensinei os meus filhos a não destruirem as teias. Porque gosto de aranhas, em primeiro lugar, mas também porque apanham outros insectos de que não gosto e porque ouvi dizer que atraem dinheiro. Por isso, sei que não são eles que as fazem desaparecer. A realidade é que há tanto movimento aqui dentro que as aranhas devem fugir. Também não reparo que haja assim tanto pó em cima dos móveis. mas isso é provavelmente porque não reparo nessas coisas, Reparar em pó, questiono-me sobre p tipo de pessoa que, com tanta maravilha e horror à sua volta para reparar, decide reparar em pó.
Na minha casa há confusão e, por isso, as teias de aranhas são poucas e por isso, talvez, raramente tenho muito dinheiro. O meu filho joga à bola na sala, apesar das minhas cerâmicas e dos meus gritos, a minha filha, quando vem viver connosco - já tenho uma filha que vive sozinha e que, para meu orgulho, já desarruma o seu próprio espaço - atira a roupa e o que tem à mão para cima do sofá ou da cama ou da gata, o vento que estes projecteis fazem, também deve contribuir para a ausência de teias de aranha. Eu danço todos os dias como se ninguém estivesse a olhar, a gata corre e atira-se para criaturas que nunca vimos, as teias não singram.
Não tenho condições para falar sobre teias de aranhas, só quero que saibam que gosto muito delas e que que seriam muito bem vindas neste feliz habitat de biodiversidade em convulsão.
Outras teias de aranha publicadas hoje no colectivo :
pela Maria João
pela Rita Dantas
pela Calita Fonseca
pela Joana
pela Mariana
(em actualização)
14.2.25
Atraso de vida
No chão da sala, com o sol de Inverno em cima, sonho acordada com uma pintura que um dia gostava de fazer e provavelmente nunca virá a luz deste dia, nem de um outro.
A preguiça sempre foi um dos meus temas preferidos, vou mesmo muito longe quando a meto à obra. Por ser preguiçosa, já faltei a muitos eventos importantes, já cheguei muitas vezes atrasada, não fiz tudo o que devia, não fui resiliente, não estive nunca nem perto de um burn out, não conquistei nenhum título, nem medalha. O meu nome será rapidamente esquecido, a humanidade não pode contar comigo para a cura de nenhuma doença importante, pode-me esquecer para uma obra que se torne clássica com o tempo, nenhum jardim será cultivado. Nunca me apresentarei correctamente maquilhada ou totalmente depilada. Todo o trabalho que fiz, fi-lo contrariada. A humanidade, tal como a conhecemos, nunca existiria se todos fossem como eu. Este atraso de vida. Saberiamos muito pouco, teriamos que imaginar quase tudo. Haveria arte que não serve para nada, por todo o lado e ninguém nunca caçaria nenhum animal com as próprias mãos. Viveriamos de maçãs caídas no chão, meio nus, morreriamos jovens e por todo o lado se dançaria ou não. Iriamos a pé para todo o lado e teriamos preguiça de voltar. Nem na pré-história, a humanidade esteve tão atrasada.
Os meus atrasos de vida, são, para mim, os meus avanços. Pelo que nunca irei a lado nenhum. Ou irei só e apenas a todo o lado. Não calculam o quanto isto irrita muita gente.
Atrasei a minha vida quando fui mãe, não pertencia a uma bolha onde a maternidade era valorizada. Atrasei-a quando fiz um ano a viajar e nunca fui tão longe. Arraso a minha vida sempre que me apaixono. E apaixono-me tantas vezes. Nesses momentos, não produzo, não escrevo, não pinto, não nada. Fico noutro mundo, a olhar o que me rodeia onde se produz tanto, onde se preocupa com tudo e com tão pouco.
O resto das pessoas nunca enlouquece como eu. O mundo tem sempre objetivos e astúcias. À minha volta todos conseguem continuar serenos, enervados, coerentes, eficazes, raivosos, estrategas, atentos ou presentes. E depois há os outros loucos, e esses respeito muito. Os diagnosticados. Os que são o que são, com ou sem paixões ou preguiça.
Interessa-me muito a preguiça e o tempo que passa devagar, os prazeres que nos desviam do que deve ser feito. Tenho cada vez mais um desinteresse para todos os domínios que têm que ser. Não sei o que pensar de mim mesmo e no atraso de vida que sou.
Quando vejo aqueles atletas de alta competição que ganham as medalhas de ouro, penso nos atrasos de vida que não se permitiram para chegar onde chegaram. O ouro é uma compensação de tudo o que perderam. Não chega.
O ouro não me interessa, sou outras as tentações a que facilmente cedo. Idealmente, dedicaria a vida à arte, mas o que me vejo fazer nos meus melhores dias é fazer da vida a minha arte.
Avanço muito devagar no que tenho que fazer. Pinto por empreitadas quando posso ou consigo, mas se alguma tentação me vem chamar quase sempre eu vou. Pago o preço muitas vezes. As oportunidades que não aproveito, as multas que os burocratas não perdoam, os sermões que os materialistas me pregam. Mas o preço forte, aquele que aparece no final, esse não o vou pagar.
Só com a vida muito atrasada se tem tempo para a viver.
Este texto foi feito para um coletivo de escrita, recomendo os atrasos de vida dos outros membros:
Calita escreveu no Panados e Arroz de Tomate
Rita Dantas escreveu no Boas Intenções
Maria João escreveu no A Gata Christie
Joana escreveu no Azul Turquesa
Mariana escreveu no Gralha Dixit
(em actualização)